"Carta a Judite
Não estive no funeral do teu filho. Por um lado, ando muito, mas muito zangado com a morte. Tenho tido a minha dose de dor nos últimos anos, e a simples ideia de uma comoção sem igual põe-me à defesa. Por outro lado, não será difícil adivinhar que pouco te lembrarás ou quererás lembrar desse dia. Claro que te reconforta o mínimo dentro do impossível de reconfortar, e que cada pessoa que chegou e te abraçou pareceu acompanhar-te um pouco, defender-te um pouco, dar-te a oportunidade para chorares outra vez e te interrogares outra vez, sobre a estupidez violenta e brutal de tudo isto. Depois o abraço acaba, e a dor não. Depois, e acima de tudo, é este o momento em que nos apercebemos do pouco, tão pouco, tão nada, que são as palavras com que nos entendemos todos os dias. Há pêsames, há condolências, há apelos à tua coragem para o futuro, há certamente quem te diga que ele há-de estar em paz, num sítio melhor deste que nos cabe percorrer, ainda, por aqui. E tudo dito com genuína comoção, tudo dito com sincera partilha de sofrimento. Mas as palavras não são deste reino em que te fizeram mergulhar. Nós, que trabalhamos uma vida inteira com palavras, que lhes sabemos o peso e medida certas para passar certas mensagens, e vêm estes dias, afinal, demonstrar-nos que elas pouco valem quando o coração fica pouco mais do que um bicho, assustado, desorientado, sangrado sem volta atrás. Alguém disse um dia que a morte de uma criança faz com que todos os pais de todo mundo abracem sofregamente todos os filhos. É tão verdade. E como tantas outras verdades, pouco pensamos nela. Porque não queremos pensar. Pela simples razão de ser o horror maior, o mais inominável, o mais indesejável de nos surgir ao caminho nesta vida. Há também os que dizem que uma morte é uma morte, todas se comparam. Não é verdade. Porque algumas, por mais que nos rasguem, inscrevem-se no que consideramos ser uma normal cadência de idade. Por isso nunca será compreensível, nunca, que um filho nos morra. Não estamos, felizmente, programados para o desaparecimento das nossas crianças. Não, não me enganei. Disse crianças. Haverá quem por aí insista em dar-te as condolências pela perda de um homem de quase 30 anos, de quem se conhecia um sorriso sereno, que estudou e aprendeu e se apaixonou e se preparava para um estimulante desafio profissional. As pessoas insistem que foi este homem que perdeu a vida, mas penso que o teu coração será como o meu, e como o de todos nós. Que um filho nunca é um homem, ou uma mulher. Porque ter um filho é fechar os olhos e lá vem aquela noite em branco, a embalá--lo porque fazia uma birra, lá vem a primeira bicicleta, nós a segurar no assento para ele não cair, lá vem o dia em que o vestimos para o levarmos à escola pela primeira vez, ou nós na praia, a pormos-lhe um chapéu na cabeça de bebé e a trazê-lo para a sombra do guarda-sol, onde há-de adormecer exausto com a brisa do mar, agarrado a uma chupeta, com uma fralda de pano sobre os olhos, ou a cara dele nos natais, enquanto desembrulhava as prendas, sentado de pijama junto à árvore iluminada. Não, os nossos filhos não são homens ou mulheres, são sempre isto. E por isso não há palavras neste mundo que cheguem. Mas tu estás cá. Estás ainda cá. E por ele deves abraçar todas essas recordações, todas, todas, as que ninguém te tirará nunca, e com elas, com a força delas, recomeçares a viver. Um dia de cada vez.
Um beijo grande, Rodrigo"
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