13/02/2010

NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM

Tenho horror a hospitais, os frios corredores, as salas de espera, ante-salas da morte, mais ainda a cemitérios onde as flores perdem o viço, não há flor bonita em campo santo. Possuo, no entanto, um cemitério meu, pessoal, eu o construí e inaugurei há alguns anos quando a vida me amadureceu de sentimento. Nele enterro aqueles que matei, ou seja, aqueles que para mim deixaram de existir, morreram: os que um dia tiveram minha estima e a perderam.
Quando um tipo vai além de todas as medidas e de facto me ofende, já com ele não me aborreço, não fico enojado ou furioso, não brigo, não corto relações, não lhe nego o cumprimento. Enterro-o na vala comum de meu cemitério - nele não existem jazigos de família, túmulos individuais, os mortos jazem em cova rasa, na promiscuidade da salafrarice, do mau carácter. Para mim o fulano morreu, foi enterrado, faça o que faça já não pode me magoar.
Raros enterros - ainda bem! - De um pérfido, de um perjuro, de um desleal, de alguém que faltou à amizade, traiu o amor, foi por demais interesseiro, falso, hipócrita, arrogante - a impostura e a presunção me ofendem fácil. No pequeno e feio cemitério, sem flores, sem lágrimas, sem pingo de saudade, apodrecem uns tantos sujeitos, umas poucas mulheres, uns e outras varri da memória, retirei da vida.
Encontro na rua um destes fantasmas, paro a conversar, escuto, correspondo às frases, às saudações, aos elogios, aceito o abraço, o beijo fraterno de Judas. Sido adiante, o tipo pensa que mais uma vez me enganou, mal sabe ele que está morto e enterrado.

Jorge Amado, "in Navegação de Cabotagem - apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei"

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